quinta-feira, 24 de maio de 2012

Apenas linchadores

  Cena corriqueira na televisão brasileira, dada a profusão de telejornais mondo cane, duvido que haja quem se espante com abusos do direito de imagem ou mesmo com o achincalhe de eventuais acusados de crimes. Faz parte do formato dos programas, tem todo dia, em todos os canais e dá ibope... Não; não é nada "edificante" por certo - mas ninguém pode alegar o inusitado, o extraordinário, o incomum. Ao contrário: tornou-se, e já faz bom tempo, padrão nos noticiosos televisivos em determinados horários.

  Por isso é notável, aí sim, o frisson causado por uma matéria desse tipo, realizada na Bahia pelo programa Brasil Urgente, da Rede Bandeirantes. Uma repórter entrevista um acusado de estupro, que confessa, ao vivo, outro crime: de roubo. Em nenhum momento a entrevistadora induz ou acusa o entrevistado, apenas pergunta... Mas, ao invés de acreditarem no meu relato, vejam e ouçam e depois me ajudem a responder algumas perguntas:

  Pois bem; um sociólogo chamado Cristóvão Feil, que assina um blog com o sugestivo nome "Diário Gauche", viu na jornalista alguém "racista, debochada, boçal, covarde e ignorante". Pergunto: onde há, no vídeo, referência à "raça" ou cor do acusado? E qual seria a covardia por ela cometida? Por acaso foi ela quem "chegou e só tomou o celular e a corrente de ouro?" O acusado não sabe o que é um exame de próstata e ela que é ignorante e boçal? E afinal, ser "debochada" por acaso é crime? Então a jornalista é acusada do quê mesmo? Um doce para quem responder mas compreende-se o non sense quando o autor a qualifica - "branca e de cabelo pintado de louro" - e revela seu desejo íntimo: "faz falta um marco regulatório na imprensa brasileira..."

  Outro esquerdista (este profissional), o jornalista Renato Rovai, editor de uma tal "Revista Fórum", diz que a repórter julgou o acusado antes da Justiça. Ora, foi ele quem confessou ter cometido o crime de roubo, ele mesmo se condenou! Ela perguntou - e ele negou - se também cometera crime sexual (mas será que a acusação surgiu do nada, quem sabe da "mente distorcida" da repórter?)... O jornalista também acusa a repórter de ter "humilhado" o acusado por sua "ignorância" quanto ao exame de corpo de delito. Não; mais uma vez foi o acusado quem se dispôs a fazer um hipotético "exame de próstata". A repórter apenas reagiu ao absurdo e, nesse caso, impossível fazê-lo sem rir... Repete-se aqui a tentativa de linchamento moral do caso anterior, as razões ficam evidentes quando ele a caracteriza como uma "repórter loirinha, com rabinho de cavalo à la Feiticeria (sic)" e incita "providências": processar a tv (censurar) e mobilizar entidades de defesa dos direitos humanos, dos negros e classistas (de jornalistas).

  De certo modo estes dois textos, de péssima qualidade, balizam as reações que depois, beirando a histeria, se propagaram nas redes sociais. Numa escalada de intensidade as acusações ficaram cada vez mais consolidadas - apesar de não corresponderem minimamente à realidade -, tal como se propagam boatos ou gritos de "pega ladrão". A partir das redes a jornalista passou à condição de racista, homofóbica, criminalizadora da pobreza, usurpadora de direitos fundamentais, transgressora da ética jornalística, "desconstrutora de políticas públicas de saúde preventiva" e até torturadora... (São exemplos os textos da "UNENEGRO", do "Portal Imprensa" e do "Jornalismo B"). Também a TV Bandeirantes recebeu as mais variadas "acusações": espetacularização da notícia, circo de horrores, falta de prestação de serviço por concessionário público... Em todas as manifestações o recorrente apelo à adoção de controles para a mídia, alguns propugnando a censura pura e simples. O evidente pendor autoritário das manifestações não pode ser minimizado: há claro movimento político no sentido do cerceamento da liberdade de expressão e de imprensa.

  Enfim, do que se acusa a jornalista baiana? De cumprir seu ofício e perguntar? De ser branca e ostentar cabelos loiros? A verdade é que a totalidade das acusações não subsiste à mais superficial análise ou crítica, não se enquadra em ilícitos penais (bem como as acusações à TV); são meras tentativas de linchamento moral. Como todo linchamento, requer-se uma turba enfurecida e protegida pela "manada" para se proceder ao "justiçamento". O processo não é muito diferente dos "pogroms" contra os judeus ou as "sessões de luta" maoístas: em nome de um presumido valor maior lincha-se quem é considerado inimigo... Este o trabalho de alguns blogs, como os acima referidos: despertar, ainda que mentindo, a fúria da multidão que, cega e presumindo-se impune, executa o lapidamento. Feito o "serviço" pouco resta às instituições do que sancioná-lo: a TV para minimizar eventuais prejuízos de imagem, a Polícia e o Ministério Público posando de politicamente corretos (vejam aqui, aqui e aqui).